sábado, 22 de setembro de 2018

A Bíblia roubada


De todas as perdas de bens e valores que já tive, três me são marcantes:

è Uma linda calça verde que ganhei na minha adolescência no dia do natal e que me tornava, assim pensava, muito charmoso e elegante – Ela simplesmente desapareceu e nunca mais a encontrei;

è A aliança de casamento que me foi roubada num assalto a mão armada na viagem que fiz para pregar na cidade de Aimorés-MG;

è E uma bíblia, doada pela minha avó Amélia, com um recado bem especial: “Ele é o neto mais ligado nas questões espirituais”.

Destas, creio que a última foi a maior de todas as perdas, já que, em relação a aliança, ganhei outra de alguns presbíteros da Igreja Presbiteriana Central de Anápolis,  entre eles, Frederico Silveira, Toninho Rodovalho e o Arinilson Mariano. Uma réplica bem bonita da aliança que usava. Além do fator financeiro, a atitude dos presbíteros fez muito bem ao meu coração pela expressão de cuidado que tiveram comigo.

Mas o assunto hoje é, “A Bíblia roubada”. Como tudo aconteceu?

Minha família procede do Leste de Minas, de um pequeno patrimônio da pequena cidade de Mutum. O local era conhecido como Santa Maria do Mutum. Naquelas terras férteis, pequenos proprietários extraiam quase tudo que era necessário para a manutenção de seus sítios, dos frutos, verduras, cereais e até a carne, baseada na criação de porcos e galinhas.
Naquela pequena vila, com cerca de 30 casas, estabeleceu-se uma Congregação Cristã, uma comunidade bem fechada quanto a usos e costumes. As mulheres trajavam roupas longas, e nos cultos usavam véus. Reuniam-se ali num pequeno salão, que cabia umas quarenta pessoas. Os bancos eram de madeira, sem encosto, com uma pequena mesa na frente, e um exemplar da bíblia, na verdade, apenas o Novo Testamento. Uma parte da Bíblia.

Meus parentes tinham sítios na região e ali residiam.

Minha avó Amélia, era muito religiosa, de confissão católica e gostava de coisas sobrenaturais, embora tivesse concepções estranhas sobre quem era Deus. Ela benzia crianças com quebranto (pequenas enfermidades), repetindo fórmulas decoradas, e quando chuvas ameaçadoras vinham para a região, fazia rezas para proteger sua casa e sua família.
Meu avô, Antonio Vieira, não era católico, era espiritualista (nenhum dos filhos sabe dizer exatamente o que ele fazia), mas ele tinha alguns livros com orientação de algum guru desconhecido, entrava diariamente no seu quarto e no escuro, abria os livros e fazia suas orações. Ele nunca compartilhou suas crenças com nenhum de seus filhos e fazia isto de forma ritualista e rotineira.

Minha outra avó, Angelina, era totalmente secularizada.
As coisas de Deus nunca lhe interessaram realmente. Ficou viúva em torno dos quarenta anos, e para criar 10 filhos numa sociedade machista, se tornou uma mulher desafiadora e ousada. Tinha um pequeno comércio, onde fazia mucambos com produtos básicos como sal, querosene, milho e fubá. Conta-se que certa vez apareceram na sua mercearia dois homens valentões que começaram a contar bravatas e ameaçar os demais. Minha vó, inteligentemente os desafiou dizendo que eles estavam armados mas que não tinham pontaria. Colocou um alvo a certa distância e eles começaram a atirar. Quando as balas acabaram, ela chamou os homens que até então estavam acuados e disse para eles darem uma surra nos valentões e eles nunca mais voltaram ali.

Um dia dois ladrões passaram por ali, com um pequeno exemplar do Novo Testamento. Eles o haviam roubado da pequena congregação cristã. Na verdade foram lá para roubar um relógio que era o único objeto de valor. Entretanto, o diácono cuidadoso, o guardava depois de cada culto. A única coisa que encontraram foi aquele livro. A Bíblia naqueles dias era um tanto assustadora para a maioria da população, e tinha uma certa áurea de livro mágico, e para acentuar sua mística os padres diziam que quem não fosse sacerdote não podia ler, porque ela poderia desviar ou enlouquecer as pessoas...talvez estivessem certos...

Aqueles homens ofereceram o livro chegou a minha vó Angelina, e ela o rejeitou veementemente, com medo do livro de capa preta. Temerosa, porém, resolveu pegá-lo para doar “a comadre Amélia”, que era religiosa. E assim o fez.

A vó Amélia o recebeu com certa palpitação, como se estivesse fazendo alguma coisa errada, mas ao mesmo tempo interessada em saber o que seria tão proibitivo naquele livro. Pelas minhas contas, isto aconteceu na década de 40, no final da Segunda Guerra Mundial. No outro dia, ela preparou rapidamente suas tarefas domésticas, terminou mais cedo suas atividades e após o almoço entrou no pomar, assentou-se aos pés de um limoeiro e começou a lê-lo, só percebendo quanto tempo havia passado, ao ouvir vozes das pessoas que a procuravam há muito tempo e ela não havia respondido. Inebriada e profundamente tocada pela bíblia, foi atingida em cheio pela sua mensagem. Sua vida nunca mais seria a mesma. Posteriormente se aproximou da Igreja Metodista, se batizou e morreu na fé evangélica, como fiel membro da sua igreja na cidade de Resplendor-MG.

O Vô Antônio também se converteu e no final da sua vida, com certa impaciência, acordava cedo no domingo da manhã, ia para a porta da igreja Metodista as 7 hs da manhã e como as pessoas demorassem a chegar, retornava bravo para sua casa, dizendo que o pastor era preguiçoso e não gostava de trabalhar.

Bem, voltemos a Bíblia roubada.

Minha vó Amélia guardava cuidadosamente este exemplar. Pressentindo sua morte, pediu que esta Bíblia me fosse entregue. E eu, naturalmente, a guardei com muito zelo, entretanto, numa exposição de bíblias feita na Gávea-RJ, registrei a história e a deixei ali para ser apreciada pelas pessoas, mas alguém, infelizmente a desviou e nunca mais tive acesso a ela. Estava bem rasgada quando a recebi, e faltava uma ou duas páginas do Evangelho de Mateus, mas pelo seu valor sentimental, me era preciosa. Por meio daquele livro, sozinha, minha vó teve um encontro profundo e real com Deus, e isto influenciaria toda uma geração, inclusive a minha vida. O livro era datado de 1912.


Manaus, Setembro 2018

Nenhum comentário:

Postar um comentário