De todas as perdas de bens e
valores que já tive, três me são marcantes:
è Uma linda calça verde que ganhei na minha adolescência
no dia do natal e que me tornava, assim pensava, muito charmoso e elegante –
Ela simplesmente desapareceu e nunca mais a encontrei;
è A aliança de casamento que me foi roubada num assalto a
mão armada na viagem que fiz para pregar na cidade de Aimorés-MG;
è E uma bíblia, doada pela minha avó Amélia, com um recado
bem especial: “Ele é o neto mais ligado nas questões espirituais”.
Destas, creio que a última foi a
maior de todas as perdas, já que, em relação a aliança, ganhei outra de alguns
presbíteros da Igreja Presbiteriana Central de Anápolis, entre eles, Frederico Silveira, Toninho
Rodovalho e o Arinilson Mariano. Uma réplica bem bonita da aliança que usava.
Além do fator financeiro, a atitude dos presbíteros fez muito bem ao meu
coração pela expressão de cuidado que tiveram comigo.
Mas o assunto hoje é, “A Bíblia
roubada”. Como tudo aconteceu?
Minha família procede do Leste de
Minas, de um pequeno patrimônio da pequena cidade de Mutum. O local era
conhecido como Santa Maria do Mutum. Naquelas terras férteis, pequenos
proprietários extraiam quase tudo que era necessário para a manutenção de seus
sítios, dos frutos, verduras, cereais e até a carne, baseada na criação de
porcos e galinhas.
Naquela pequena vila, com cerca
de 30 casas, estabeleceu-se uma Congregação Cristã, uma comunidade bem fechada
quanto a usos e costumes. As mulheres trajavam roupas longas, e nos cultos
usavam véus. Reuniam-se ali num pequeno salão, que cabia umas quarenta pessoas.
Os bancos eram de madeira, sem encosto, com uma pequena mesa na frente, e um
exemplar da bíblia, na verdade, apenas o Novo Testamento. Uma parte da Bíblia.
Meus parentes tinham sítios na
região e ali residiam.
Minha avó Amélia, era muito
religiosa, de confissão católica e gostava de coisas sobrenaturais, embora
tivesse concepções estranhas sobre quem era Deus. Ela benzia crianças com
quebranto (pequenas enfermidades), repetindo fórmulas decoradas, e quando
chuvas ameaçadoras vinham para a região, fazia rezas para proteger sua casa e
sua família.
Meu avô, Antonio Vieira, não era
católico, era espiritualista (nenhum dos filhos sabe dizer exatamente o que ele
fazia), mas ele tinha alguns livros com orientação de algum guru desconhecido,
entrava diariamente no seu quarto e no escuro, abria os livros e fazia suas
orações. Ele nunca compartilhou suas crenças com nenhum de seus filhos e fazia
isto de forma ritualista e rotineira.
Minha outra avó, Angelina, era
totalmente secularizada.
As coisas de Deus nunca lhe
interessaram realmente. Ficou viúva em torno dos quarenta anos, e para criar 10
filhos numa sociedade machista, se tornou uma mulher desafiadora e ousada. Tinha
um pequeno comércio, onde fazia mucambos com produtos básicos como sal,
querosene, milho e fubá. Conta-se que certa vez apareceram na sua mercearia
dois homens valentões que começaram a contar bravatas e ameaçar os demais.
Minha vó, inteligentemente os desafiou dizendo que eles estavam armados mas que
não tinham pontaria. Colocou um alvo a certa distância e eles começaram a
atirar. Quando as balas acabaram, ela chamou os homens que até então estavam
acuados e disse para eles darem uma surra nos valentões e eles nunca mais
voltaram ali.
Um dia dois ladrões passaram por
ali, com um pequeno exemplar do Novo Testamento. Eles o haviam roubado da
pequena congregação cristã. Na verdade foram lá para roubar um relógio que era
o único objeto de valor. Entretanto, o diácono cuidadoso, o guardava depois de
cada culto. A única coisa que encontraram foi aquele livro. A Bíblia naqueles
dias era um tanto assustadora para a maioria da população, e tinha uma certa
áurea de livro mágico, e para acentuar sua mística os padres diziam que quem
não fosse sacerdote não podia ler, porque ela poderia desviar ou enlouquecer as
pessoas...talvez estivessem certos...
Aqueles homens ofereceram o livro
chegou a minha vó Angelina, e ela o rejeitou veementemente, com medo do livro
de capa preta. Temerosa, porém, resolveu pegá-lo para doar “a comadre Amélia”,
que era religiosa. E assim o fez.
A vó Amélia o recebeu com certa
palpitação, como se estivesse fazendo alguma coisa errada, mas ao mesmo tempo
interessada em saber o que seria tão proibitivo naquele livro. Pelas minhas
contas, isto aconteceu na década de 40, no final da Segunda Guerra Mundial. No
outro dia, ela preparou rapidamente suas tarefas domésticas, terminou mais cedo
suas atividades e após o almoço entrou no pomar, assentou-se aos pés de um
limoeiro e começou a lê-lo, só percebendo quanto tempo havia passado, ao ouvir vozes
das pessoas que a procuravam há muito tempo e ela não havia respondido.
Inebriada e profundamente tocada pela bíblia, foi atingida em cheio pela sua
mensagem. Sua vida nunca mais seria a mesma. Posteriormente se aproximou da
Igreja Metodista, se batizou e morreu na fé evangélica, como fiel membro da sua
igreja na cidade de Resplendor-MG.
O Vô Antônio também se converteu
e no final da sua vida, com certa impaciência, acordava cedo no domingo da
manhã, ia para a porta da igreja Metodista as 7 hs da manhã e como as pessoas
demorassem a chegar, retornava bravo para sua casa, dizendo que o pastor era
preguiçoso e não gostava de trabalhar.
Bem, voltemos a Bíblia roubada.
Minha vó Amélia guardava
cuidadosamente este exemplar. Pressentindo sua morte, pediu que esta Bíblia me
fosse entregue. E eu, naturalmente, a guardei com muito zelo, entretanto, numa
exposição de bíblias feita na Gávea-RJ, registrei a história e a deixei ali
para ser apreciada pelas pessoas, mas alguém, infelizmente a desviou e nunca
mais tive acesso a ela. Estava bem rasgada quando a recebi, e faltava uma ou
duas páginas do Evangelho de Mateus, mas pelo seu valor sentimental, me era
preciosa. Por meio daquele livro, sozinha, minha vó teve um encontro profundo e
real com Deus, e isto influenciaria toda uma geração, inclusive a minha vida. O
livro era datado de 1912.
Manaus, Setembro 2018
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